Reforma Ortográfica
Reforma estúpida
Mais uma vez, burocratas de pouco tino pretendem enfiar-nos uma reforma ortográfica goela abaixo. Segundo reportagem da Folha (íntegra disponível para assinantes do jornal ou do UOL), as mudanças podem começar já no ano que vem. Há aí dois despropósitos e uma sacanagem.
Em primeiro lugar, a reforma proposta é ruim: gasta-se muita energia para obter avanços menos do que tímidos em termos de unificação da escrita dos países lusófonos. Isto, é claro, se Portugal comprar o pacote, o que talvez não faça. Em segundo e mais importante, é errado e inútil tentar definir os rumos de uma língua natural.
Só vão sair ganhando aqueles editores mais ágeis, que já têm prontos dicionários, gramáticas, cursos de atualização e material didático de acordo com a "nova ortografia" --e é aí que reside a esperteza.
Nunca foram meia dúzia de consoantes mudas --como nas formas lusitanas "adopção" e "óptimo"-- que constituíram barreira à intercomunicabilidade entre leitores e escritores dos dois lados do Atlântico. O mesmo se pode dizer do trema, das quatro ou cinco regras de acentuação que serão alteradas e das sempre exóticas disposições sobre o hífen --os demais pontos que a reforma abarca. Se há empecilhos à boa compreensão entre falantes do Brasil, de Portugal e de países africanos e asiáticos (não nos esqueçamos de Timor Leste), eles estão na escolha do léxico e no uso de expressões locais, felizmente ao abrigo da sanha legiferante de dicionaristas e parlamentares.
Línguas são como organismos vivos: nascem, crescem e morrem. Numa palavra, evoluem. Só que, ao contrário de entidades compostas por moléculas de carbono e codificadas por genes, fazem-no principalmente pelo que os biólogos chamam de "genetic drift" (deriva genética), isto é, sem muita seleção --até pode haver alguma competição entre idiomas, mas bem menos do que entre indivíduos. Escrever "super-homem" ou "superomem" não torna o português mais ou menos apto a sobreviver no mundo lingüístico.
E, se há algo especialmente desimportante para determinar o sucesso ou fracasso de um idioma, é a ortografia tomada isoladamente. Analisemos o caso do inglês, indiscutivelmente o idioma de maior prestígio hoje no mundo. A complexidade de sua ortografia, que é muito pouco fonética, já gerou toda uma mitologia. O escritor Mark Twain, por exemplo, propôs em tom de chiste que a palavra "fish" ("peixe") fosse escrita "ghotiugh", em que o "gh" soa como "f", como ocorre em "enough" ("bastante"); o "o" tem som de "i", como em "women" ("mulheres"); o grupo "ti" vale por "ch", como em "nation" ("nação"); e o grupo "ugh" não tem som algum, como em "ought" ("dever").
Só que o problema ortográfico do inglês, apesar de trazer mesmo uma série de dificuldades, em especial na alfabetização de crianças e no aprendizado como língua estrangeira, revelou-se também um dos ingredientes que, ao lado de outras características, tornaram-no uma língua extremamente versátil, o que contribuiu para o seu sucesso. Com efeito, a anomia ortográfica aliada ao despojamento dos sistemas nominal e verbal trouxe uma vantagem insuspeitada. Como as palavras podem ser escritas de qualquer jeito mesmo e substantivos se tornam verbos sem a necessidade de nenhuma adequação morfológica --em português, para tornar-se verbo, é preciso obedecer à flexão, recebendo, por exemplo, um "r" no infinitivo, como em "amar"--, a língua ganha uma enorme flexibilidade. Praticamente qualquer palavra estrangeira pode ser assimilada em sua forma original. Nenhum termo fica estranho demais para "soar" inglês. Mais do que isso, pode tornar-se, além de um simples nome, também um verbo. É o caso de "toboggan" ("tobogã" e também "fazer tobogã") que veio do idioma algonquino "ipsis litteris". O inglês é, nesse sentido, uma língua perfeita para a era da globalização e, não por acaso, aquela com maior número de vocábulos, boa parte dos quais emprestados de outros povos.
O "genetic drift" também faz com que idiomas possam conservar traços imemoriais sem que isso implique custos demasiado altos. Tal característica torna as línguas naturais verdadeiros palimpsestos, capazes tanto de assimilar modismos criados na véspera como de guardar relíquias herdadas de idiomas muito mais antigos. Seu curso, ainda mais que o da seleção natural, é absolutamente imprevisível. Vale a pena investigar dois ou três casos.
Para o termo "beócio", por exemplo, o dicionário Aurélio registra: "curto de inteligência; ignorante, boçal". Se olharmos para a etimologia, descobriremos estar diante de um preconceito das elites gregas, para as quais os habitantes da província da Beócia --os beócios-- não passavam de camponeses estúpidos e glutões. O sentido de glutonaria se perdeu, mas o de estupidez se manteve em várias línguas modernas.
Obviamente, não eram apenas os gregos os arrogantes e intolerantes. Os judeus do século 12 a.C. também tinham seus desafetos, mais especificamente os filisteus, com quem viviam guerreando. Foi assim que, em hebraico, "pelishti" ganhou conotações pouco abonadoras, que, passados 33 séculos, continuam existindo no português contemporâneo. Para "filisteu" o dicionário Houaiss traz: "aquele que é ou se mostra inculto e cujos interesses são estritamente materiais, vulgares, convencionais; que ou aquele que é desprovido de inteligência e de imaginação artística ou intelectual".
Freqüentemente, surgem bem-intencionadas patrulhas lingüísticas tentando corrigir as injustiças. Ainda não vi ninguém propondo eliminar "beócio" e "filisteu" de nosso léxico, mas acho que a sugestão não apareceu mais por desconhecimento do que por falta de disposição. Recente cartilha do governo federal queria limar termos "preconceituosos" como "anão", "aidético", "barbeiro", "beata", "comunista", "xiita", "funcionário público", "peão". Escrevi algo a respeito na coluna "Tributo à estultice".
Tais esforços, além de tolos, acabam muitas vezes tendo efeito muito diferente do inicialmente imaginado. É o caso da palavra "cretino". Em regiões montanhosas, como a Suíça, são pobres as fontes de iodo ambiental, o que, antes do processo de iodatação do sal de cozinha, tendia a provocar alta prevalência de hipotireoidismo congênito (ou cretinismo). Como os bons helvéticos já eram politicamente corretos "avant la lettre", recusavam-se a chamar as crianças afetadas pela síndrome pelo nome de "idiotas". No século 18, passaram a usar o mais piedoso termo "cristão", que soava "crétin" no francês dialetal ali falado. Acabaram inventando, sem querer, a palavra "cretino", hoje de alcance mundial e politicamente incorreta. Preconceitos podem até ser reforçados pela língua, mas são capazes de sobreviver muito bem sem ela.
A lição a tirar dessas historietas é que é bobagem tentar legislar sobre um fenômeno tão complexo como a linguagem. Uma analogia válida seria a de deputados tentando baixar uma lei para regular a taxa de mutação do gene p53. Não vai dar certo. Quer dizer, a reforma poderá até nos levar a escrever as palavras de um geito (sic) diferente, mas isso em nada alterará a essência ou os processos da língua e não chegará nem perto de tornar as muitas variantes do português mais intercompreensíveis. Ao contrário, irá apenas criar o incômodo de exigir de alguns milhões de usuários que percam algum tempo para aprender as novas regras cuja arbitrariedade só não é superada pela inutilidade. Se há algo a ser eliminado, não são acentos e hifens, mas a estultícia de burocratas.
Hélio Schwartsman, 41, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
E-mail: helio@folhasp.com.br
Mais uma vez, burocratas de pouco tino pretendem enfiar-nos uma reforma ortográfica goela abaixo. Segundo reportagem da Folha (íntegra disponível para assinantes do jornal ou do UOL), as mudanças podem começar já no ano que vem. Há aí dois despropósitos e uma sacanagem.
Em primeiro lugar, a reforma proposta é ruim: gasta-se muita energia para obter avanços menos do que tímidos em termos de unificação da escrita dos países lusófonos. Isto, é claro, se Portugal comprar o pacote, o que talvez não faça. Em segundo e mais importante, é errado e inútil tentar definir os rumos de uma língua natural.
Só vão sair ganhando aqueles editores mais ágeis, que já têm prontos dicionários, gramáticas, cursos de atualização e material didático de acordo com a "nova ortografia" --e é aí que reside a esperteza.
Nunca foram meia dúzia de consoantes mudas --como nas formas lusitanas "adopção" e "óptimo"-- que constituíram barreira à intercomunicabilidade entre leitores e escritores dos dois lados do Atlântico. O mesmo se pode dizer do trema, das quatro ou cinco regras de acentuação que serão alteradas e das sempre exóticas disposições sobre o hífen --os demais pontos que a reforma abarca. Se há empecilhos à boa compreensão entre falantes do Brasil, de Portugal e de países africanos e asiáticos (não nos esqueçamos de Timor Leste), eles estão na escolha do léxico e no uso de expressões locais, felizmente ao abrigo da sanha legiferante de dicionaristas e parlamentares.
Línguas são como organismos vivos: nascem, crescem e morrem. Numa palavra, evoluem. Só que, ao contrário de entidades compostas por moléculas de carbono e codificadas por genes, fazem-no principalmente pelo que os biólogos chamam de "genetic drift" (deriva genética), isto é, sem muita seleção --até pode haver alguma competição entre idiomas, mas bem menos do que entre indivíduos. Escrever "super-homem" ou "superomem" não torna o português mais ou menos apto a sobreviver no mundo lingüístico.
E, se há algo especialmente desimportante para determinar o sucesso ou fracasso de um idioma, é a ortografia tomada isoladamente. Analisemos o caso do inglês, indiscutivelmente o idioma de maior prestígio hoje no mundo. A complexidade de sua ortografia, que é muito pouco fonética, já gerou toda uma mitologia. O escritor Mark Twain, por exemplo, propôs em tom de chiste que a palavra "fish" ("peixe") fosse escrita "ghotiugh", em que o "gh" soa como "f", como ocorre em "enough" ("bastante"); o "o" tem som de "i", como em "women" ("mulheres"); o grupo "ti" vale por "ch", como em "nation" ("nação"); e o grupo "ugh" não tem som algum, como em "ought" ("dever").
Só que o problema ortográfico do inglês, apesar de trazer mesmo uma série de dificuldades, em especial na alfabetização de crianças e no aprendizado como língua estrangeira, revelou-se também um dos ingredientes que, ao lado de outras características, tornaram-no uma língua extremamente versátil, o que contribuiu para o seu sucesso. Com efeito, a anomia ortográfica aliada ao despojamento dos sistemas nominal e verbal trouxe uma vantagem insuspeitada. Como as palavras podem ser escritas de qualquer jeito mesmo e substantivos se tornam verbos sem a necessidade de nenhuma adequação morfológica --em português, para tornar-se verbo, é preciso obedecer à flexão, recebendo, por exemplo, um "r" no infinitivo, como em "amar"--, a língua ganha uma enorme flexibilidade. Praticamente qualquer palavra estrangeira pode ser assimilada em sua forma original. Nenhum termo fica estranho demais para "soar" inglês. Mais do que isso, pode tornar-se, além de um simples nome, também um verbo. É o caso de "toboggan" ("tobogã" e também "fazer tobogã") que veio do idioma algonquino "ipsis litteris". O inglês é, nesse sentido, uma língua perfeita para a era da globalização e, não por acaso, aquela com maior número de vocábulos, boa parte dos quais emprestados de outros povos.
O "genetic drift" também faz com que idiomas possam conservar traços imemoriais sem que isso implique custos demasiado altos. Tal característica torna as línguas naturais verdadeiros palimpsestos, capazes tanto de assimilar modismos criados na véspera como de guardar relíquias herdadas de idiomas muito mais antigos. Seu curso, ainda mais que o da seleção natural, é absolutamente imprevisível. Vale a pena investigar dois ou três casos.
Para o termo "beócio", por exemplo, o dicionário Aurélio registra: "curto de inteligência; ignorante, boçal". Se olharmos para a etimologia, descobriremos estar diante de um preconceito das elites gregas, para as quais os habitantes da província da Beócia --os beócios-- não passavam de camponeses estúpidos e glutões. O sentido de glutonaria se perdeu, mas o de estupidez se manteve em várias línguas modernas.
Obviamente, não eram apenas os gregos os arrogantes e intolerantes. Os judeus do século 12 a.C. também tinham seus desafetos, mais especificamente os filisteus, com quem viviam guerreando. Foi assim que, em hebraico, "pelishti" ganhou conotações pouco abonadoras, que, passados 33 séculos, continuam existindo no português contemporâneo. Para "filisteu" o dicionário Houaiss traz: "aquele que é ou se mostra inculto e cujos interesses são estritamente materiais, vulgares, convencionais; que ou aquele que é desprovido de inteligência e de imaginação artística ou intelectual".
Freqüentemente, surgem bem-intencionadas patrulhas lingüísticas tentando corrigir as injustiças. Ainda não vi ninguém propondo eliminar "beócio" e "filisteu" de nosso léxico, mas acho que a sugestão não apareceu mais por desconhecimento do que por falta de disposição. Recente cartilha do governo federal queria limar termos "preconceituosos" como "anão", "aidético", "barbeiro", "beata", "comunista", "xiita", "funcionário público", "peão". Escrevi algo a respeito na coluna "Tributo à estultice".
Tais esforços, além de tolos, acabam muitas vezes tendo efeito muito diferente do inicialmente imaginado. É o caso da palavra "cretino". Em regiões montanhosas, como a Suíça, são pobres as fontes de iodo ambiental, o que, antes do processo de iodatação do sal de cozinha, tendia a provocar alta prevalência de hipotireoidismo congênito (ou cretinismo). Como os bons helvéticos já eram politicamente corretos "avant la lettre", recusavam-se a chamar as crianças afetadas pela síndrome pelo nome de "idiotas". No século 18, passaram a usar o mais piedoso termo "cristão", que soava "crétin" no francês dialetal ali falado. Acabaram inventando, sem querer, a palavra "cretino", hoje de alcance mundial e politicamente incorreta. Preconceitos podem até ser reforçados pela língua, mas são capazes de sobreviver muito bem sem ela.
A lição a tirar dessas historietas é que é bobagem tentar legislar sobre um fenômeno tão complexo como a linguagem. Uma analogia válida seria a de deputados tentando baixar uma lei para regular a taxa de mutação do gene p53. Não vai dar certo. Quer dizer, a reforma poderá até nos levar a escrever as palavras de um geito (sic) diferente, mas isso em nada alterará a essência ou os processos da língua e não chegará nem perto de tornar as muitas variantes do português mais intercompreensíveis. Ao contrário, irá apenas criar o incômodo de exigir de alguns milhões de usuários que percam algum tempo para aprender as novas regras cuja arbitrariedade só não é superada pela inutilidade. Se há algo a ser eliminado, não são acentos e hifens, mas a estultícia de burocratas.
Hélio Schwartsman, 41, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
E-mail: helio@folhasp.com.br
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